UMA DANÇA COM A NINA

A discoteca, tantas noites por nós adjudicada à conta das recorrentes 80´s parties, até há pouco a meio gás, enche-se de súbito. A clientela, à qual agradeço em silêncio minimizar a velhice que, de outro modo, receio exibir, amontoa-se na pista. Passam Bauhaus, ou Joy Division, ou The Cure, ou The Sisters Of Mercy. Deitei-me despudoradamente na poltrona mais próxima que se nos oferece na sala anexa à pista de dança, enquanto espero que a música que então ecoa ao meu redor termine. Oxalá as pernas deixem de latejar a tempo da próxima faixa. Desconheço, claro, a faixa seguinte mas, até agora, a selecção dir-se-á quase irrepreensível. Chegámos antes do habitual. O casal recostado à minha esquerda discute os méritos relativos da poligamia. Ponho-me à escuta, eles reparam e aparentam indiferença, pelo que continuo. À minha frente, o Henrique impressiona-assusta-diverte metade dos dançarinos com a sua já famosa flexibilidade. De momento, assume a posição de lótus. Concentro-me de novo na conversa dos meus companheiros de descanso apenas para perder o fio à meada. Olho para cima – por esta altura também já eu ensaio uma qualquer posição bizarra na poltrona de que me apropriei – e encontro a Nina a observar-me.

Desarmante. A Nina é desarmante. Da América do Norte, acrobata, pequena, esguia, de sorriso fácil, voz amena, desorganizada. Enverga uns calções de ganga, All Stars rasos em tons de cinza, um top acetinado. Vem contrariada. “Porquê?”, questiono. Entendemos a atracção exercida pela Nina. Todos o sentimos um tanto desde o primeiro contacto embora cientes do particular afecto que o Henrique lhe nutre e que nos apraz imaginar. Quão raramente nos deparamos com uma pessoa que acompanhe na sua exuberância o mais exuberante elemento do nosso grupo. Giro sobre mim próprio e a Nina aproveita para se estender ao comprido encostada a mim. Conta-me o intuito da vinda a Portugal, as saudades da família, a companhia dos últimos dias, o problema de saúde. Teme pelo afecto que o Henrique lhe nutre ser superior àquele que pode retribuir. Ainda sem fôlego, acrescenta nada ter a queixar-se da nossa recepção. Aceno como que num transe. O tecido do top da Nina pouco disfarça os mamilos que, à escassa distância a que nos encontramos, não deixo de olhar. Censuro-me, recupero a presença de espírito, e foco-me de novo dada a candura do desabafo. Dói-me imaginar a dor do Henrique – aí vem ela – agora que a nossa pequena acrobata me abraça e se levanta em direcção à silhueta que ondula junto ao Fausto e ao seu primo de Bragança. Mais ainda porque a desejo nesses mesmos segundos que a Nina leva a chegar-se ao pé do Henrique. A expressão dele cai por terra, salto da minha poltrona para a pista de dança, junto-me ao Fausto e ao seu primo, e dançamos até a energia nos faltar confiantes de que “a noite acabou”.

Somos três tipos no degrau da porta de entrada adjacente à de uma discoteca em meados de Agosto do ano em que dissemos por fim adeus à vida de estudantes de Humanidades. Acabo por afastar-me tal como costumo querer dos outros quando me encontro vulnerável. A Nina e o primo do Fausto saem passados minutos. Descemos a rua.

Chegamos bem de madrugada à residência universitária. Tudo neste imóvel nos leva a crer que entrámos num estabelecimento orgiástico, o que sem sombra de dúvida terá fundamento. Os colegas de casa do Henrique, louros de perfil marmóreo, nórdicos quase todos – para lá da espanhola e dos dois indianos – deixaram-nos desocupada a sala de estar. Decidimos ir para lá. Tudo bem, a robustez da cama do Henrique é conhecida mas dormirem cinco é tentar a sorte. A Nina aninha-se. Um bongo jaz esquecido a um canto entre dois sofás. Bebemos um copo de tinto.

Sem que o sono se avizinhe e à medida que primo do Fausto enrola a sua ganza e nós outros nos entreolhamos, a Nina puxa de um terço do interior da mochila. Fizeram-se adereços de moda um tanto duvidosa – não me desconcerta. Escutar junto ao meu ouvido a Nina rezar o terço desconcerta, até pelas raízes semitas às quais intuitivamente associei a sua pertença a uma outra comunidade religiosa. É triste, como tudo o tem sido esta noite, sem que por isso menos belo. Do outro lado da ampla divisão, o Fausto leva o cigarro aos lábios, as volutas do fumo rente à cara encobrem-lhe a expressão. Contenho as lágrimas. Constato que não sou o único a falhar. Ao longo do período de faculdade, e embora muito amigos, não nos encontrámos a salvo da performatividade académica. “Acabou.”, digo entre dentes. Surge Jean Louis, um francês de origem indiana, decidido a ocupar o último sofá disponível. Quatro dias bastaram para que a Nina se nos tenha tornado íntima. Adormeceu vai o terço a meio. Creio que dará problemas mas, de momento, sinto-me grato.

— JA

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